Começa assim:
«Vivemos um tempo em que os centros colapsam e as margens, discretamente, adquirem densidade. Os territórios insulares, tantas vezes lidos como exóticos ou periféricos, tornaram-se lugares de observação e ensaio. Espaços onde o mundo se revela, não como totalidade, mas como fragmento em tensão. É a partir deste contexto que se delineia o Festival Fim do Mundo, em São Tomé e Príncipe — não como apoteose nem como diagnóstico, mas como possibilidade de escuta, de pensamento situado e de articulação entre práticas culturais e consciência ecológica.
"Curar, Comer, Adiar": três verbos que sugerem uma gramática mínima para atravessar o tempo presente. O ciclo de conferências Alterações Climáticas e o Papel das Ilhas propõe modos de levantar perguntas relevantes e tornar visível a fricção entre o conhecimento técnico e os saberes territoriais. Entre arte, ciência, política e memória, constrói-se um campo relacional orientado para o gesto, e não para o consenso.
As ilhas apresentam-se como formas de vida marcadas por limites físicos, mas amplificadas por práticas de cuidado, adaptação e resistência. De Mayotte aos Açores, do Haiti à Madeira, passando por Madagáscar, Canárias ou Cabo Verde, emergem relatos que recusam o colapso como única narrativa. Encontramos, nesses lugares, uma intimidade com o ritmo da terra, com os silêncios da água, com o tempo longo das plantas.
Este festival define-se como espaço de fricção e abertura. A arte que aqui circula não se presta à função decorativa nem à ilustração de causas. Assume-se como escavação e pesquisa. Entre práticas performativas, residências, conversas, experiências culinárias e arquivos efémeros, desenha-se uma constelação de gestos — uns públicos, outros silenciosos — que revelam a textura das relações e a complexidade dos territórios. (...)». Ricardo Barbosa Vicente.